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A voz, o poeta, o mito
Conheça a trajetória de Bob Dylan, um dos maiores artistas do século 20, que se apresenta no Brasil este mês
por Daniel Benevides

A cabeleira de Bob Dylan, uma profusão de fios convulsos apontando para todas as direções, é a parte que resume o todo. Envolta num halo bíblico, possível segredo de força incomum, marca de rebeldia e carisma, condutora de idéias extraordinárias, nunca viu uma tesoura profissional. O maior poeta da música pop mundial jamais foi ao barbeiro ou ao cabeleireiro. Tinha uma teoria curiosa sobre não mexer demais com as madeixas, e só permitia que as incontáveis namoradas ao longo da vida aparassem aqui e ali o indefectível emaranhado castanho.

Aos 10 anos, quando Robert Allen Zimmerman (1941), nascido em Duluth, no estado americano de Minnesota, descobriu o violão e depois o piano que viria a aprender a tocar sozinho, tentando copiar as músicas folk, country e blues que ouvia no rádio , seu cabelo já exibia um pequeno topete, copiado de ídolos como Little Richard e James Dean. Petulante, o topete era a ponta visível da ambição artística daquele que um dia teria cerca de 500 composições registradas, o status de lenda e até uma indicação ao Nobel de literatura. Para afl ição dos pais, um casal judeu de classe média, que queria que o filho largasse a poesia e fosse doutor, o topete cresceria, juntamente com a determinação férrea e o talento incomum.
Hino de uma época

Um acordo com o pai garantiu que Bob fosse para Nova York, palco do mundo. Ele tinha um ano para conseguir o que queria, ou então teria de arrumar um emprego respeitável. No bairro boêmio de Greenwich Village, Bob conheceu outros topetudos como ele e alguns cabeludos e barbudos, poetas, pintores, músicos, atores, dramaturgos. Acompanhado apenas da gaita e do violão, tentou a sorte em pequenos bares e cafés, cantando em canjas. Às vezes tocava para outros músicos, com os ouvidos atentos, sempre aprendendo.

Fantasista, recriava a própria biografia com cores mais fortes, para impressionar as pessoas. Ora dizia ter vivido no México e viajado o país inteiro de trem, tocando por comida nos vilarejos, ora se declarava descendente dos índios sioux, tecendo uma aura romântica que o tornava próximo de suas maiores influências, o bardo errante Woody Guthrie, pai do folk mais engajado, para quem compôs sua primeira canção importante, A Song to Woody, e o atormentado e genial poeta francês Arthur Rimbaud, autor de Uma Temporada no Inferno e Iluminações.

O primeiro contrato veio por insistência de John Hammond, produtor lendário da Columbia, o homem que havia descoberto Billie Holiday. Ninguém na poderosa gravadora acreditava naquele jovem de 20 anos, bochechudo e arrogante, que ainda por cima tinha uma voz terrivelmente anasalada e não articulava abertamente as palavras. O LP de estréia, com seu nome, vendeu mesmo pouco. Mas o segundo, que veio no ano seguinte (1962), The Freewheelin Bob Dylan, tinha uma canção que se tornaria hino involuntário da época (e de todas as épocas que viriam): Blowin in the Wind, que Bob escreveu em alguns minutos, sentado num café, como fazia tantas vezes.

Por mais que se incomodasse com isso, pois não queria ser rotulado, Dylan passou a ser visto como cantor de protesto, a voz de uma geração. Outras canções como a apocalíptica A Hard Rains a Gonna Fall, composta em plena crise dos mísseis em Cuba, quando os americanos achavam que o mundo podia acabar de uma hora para outra; a militante Only a Pawn in the Game, narrando o assassinato de um ativista negro; e o enfático libelo pacifista Masters of War reforçaram a nova fama.

A cantora Joan Baez teve papel importante nessa primeira fase. Famosa por sua voz angelical e ferrenha defesa dos direitos civis, ela, como tantas outras depois, se apaixonou por aquele sujeito franzino e maltrapilho que, não obstante, tinha um senso de humor irresistível (algo diabólico) e dava mostras de ser um gênio. Carregava ele para todos os palcos a que ia, especialmente ao Newport Folk Festival, onde Dylan inflamou definitivamente a imaginação dos jovens estudantes progressistas. Cantavam em dueto, como rei do protesto e rainha da paz, o casal perfeito da militância folk de esquerda.
Gênio polêmico

Mas o idílio durou pouco. Bob Dylan detestava sentir-se obrigado a satisfazer expectativas, preferia ser do contra. Pouco depois, em 1965 anochave em sua carreira e na história do rock voltou a Newport na condição de atração mais esperada. Começou o show como sempre, cantando suas letras longas, cheias de insights inspiradores e imagens originais, sobre a base simples e cativante do violão e o acompanhamento da gaita, que prendia num suporte ao longo do pescoço. Na segunda metade, porém, chamou parte dos músicos de uma banda de blues e literalmente detonou uma bomba, gritando ao microfone para se igualar ao som ensurdecedor dos instrumentos elétricos e da bateria. Após um momento de perplexidade, a platéia respondeu em volume igual, com vaias indignadas ao que lhes parecia ser uma traição à pureza do folk. Diz a lenda que Pete Seeger, herdeiro direto de Woody Guthrie e amigo de Bob, teria tentado cortar o cabo de força com um machado.

Seguiu-se um período de muitas vaias e incompreensão, mas também uma seqüência imbatível de obras-primas, que defi niram o espírito dos anos 60. Bringing It All Back Home trazia um lado acústico, ainda folk, mas tinha no lado B sua face elétrica, rock. Tinha também aquele que pode ser visto como o primeiro rap já feito: Subterranean Homesick Blues (que gerou também o primeiro clipe, imitado até hoje: a famosa abertura do documentário Dont Look Back, em que Bob aparece num beco descartando cartolinas com trechos da letra). Highway 61 Revisited trazia letras enigmáticas, próximas do absurdo, e uma sonoridade única, com canções ousadamente longas, ao mesmo tempo espontâneas e muito sofisticadas. É o disco de Like a Rolling Stone, tida por muitos como a melhor música pop de todos os tempos.

Blonde on Blonde viria pouco tempo depois. Primeiro álbum duplo já feito, primeiro a dar créditos aos músicos na contracapa e o primeiro a abrir com uma música falando abertamente de drogas (Rainy Day Women # 12 & 35), gravada caracteristicamente num só take, incluindo erros, risadas e outros ruídos. Mais que isso, porém, é o disco em que possivelmente estão as melhores letras de Dylan, devedoras de passagens da Bíblia, dos beatniks e simbolistas franceses, e comparáveis ao melhor de Allen Ginsberg, Charles Baudelaire e T.S. Eliot, ou qualquer outro que se possa pensar. O curioso é que, apesar de nada modesto, Dylan minimizava seu impressionante poder criativo, dizendo que as palavras fluíam através dele.

Esses discos transformaram completamente o jeito de pensar e fazer música, e mesmo o comportamento das pessoas. Os Beatles, por exemplo, diziam-se profundamente influenciados, especialmente depois de uma ou duas noites de conversa com o trovador de Minnesota, envolta em fumaça inebriante. Foi aí que soltaram a mão da namorada ideal, personagem de quase todas as suas canções até então, e passaram a seguir pelos caminhos mais tortuosos e complexos aonde apontava a obra de Dylan, que tinha ficado amigo de Lennon e Harrison. O mesmo se pode dizer dos Rolling Stones e de todos os demais artistas significativos da época e de épocas seguintes, como Hendrix (que fez versões definitivas de algumas de suas músicas), David Bowie, Eric Clapton, Bruce Springsteen, Elvis Costello, Tom Waits... Para Bruce, se Elvis tinha libertado o corpo, Bob Dylan libertou a mente.
Recluso e esquivo

Ao contrário de quase todos eles, no entanto, Bob não gostava de dar entrevistas, de ensaiar e muito menos do exaustivo processo de gravação. O mesmo jeito informal com que compunha e escrevia as letras, batendo na velha Remington ou anotando em guardanapos nas mesas de café, ele levava para dentro do estúdio, gravando tudo de primeira, decidindo na hora, sem ensaio e muito menos partitura. Era a lei do quanto mais cru e espontâneo melhor, para desespero dos produtores, que tentavam a todo custo polir as gravações. Há um episódio exemplar: certa vez Dylan surgiu no estúdio sem avisar e começou a tocar piano. Não havia nada instalado e, antes que ele começasse a cantar, sabendo que aquela poderia ser a única oportunidade, o produtor correu da cabine de som e ficou segurando um microfone na direção do astro distraído. Por essas e por outras, é talvez o artista mais pirateado da história. A ponto de ter várias gravações piratas lançadas oficialmente, como as lendárias The Basement Tapes, feitas de modo totalmente caseiro com os amigos canadenses da The Band, banda que o acompanhou em vários momentos históricos.

Bob Dylan é, provavelmente o artista sobre quem mais se escreveu, que mais suscitou interpretações, teses de doutorado, capas de revista, biografias: seu casamento com Sara Lownds, que lhe deu cinco filhos (entre eles Jakob Dylan, que faria mais sucesso comercial do que o pai, com sua banda Wall-flowers); o misterioso acidente de moto em 1966, que o afastou da vida pública por um par de anos (dizem que o verdadeiro motivo foram as drogas) e um conseqüente retorno às raízes (o clássico John Wesley Harding é dessa época); a malfadada tentativa de se tornar cineasta com o filme Renaldo & Clara; sua inesperada conversão ao cristianismo, que gerou alguns discos de valor duvidoso e (novamente!) a incompreensão de boa parte dos fãs e da crítica; o casamento secreto com Carolyn Dennis e a filha que tiveram; o sucesso do super-grupo de amigos Traveling Wilburys, que reunia, além de Bob, o lendário Roy Orbison, George Harrison, Jeff Lynne e Tom Petty; e muito mais.

Mas principalmente a volta por cima com os últimos discos e o livro de memórias Crônicas, bastante elogiado, o primeiro de uma prometida trilogia. Depois de passar dos 60 anos, sem nada a provar, nem a si mesmo nem a ninguém, Bob Dylan surpreendeu a todos e produziu três CDs tão bons quanto suas obras-primas dos anos 60 para alguns, até melhores: Time Out of Mind, Love and Theft e Modern Times. Se a voz ganhou em maturidade e sábia e irônica aspereza, fruto de uma vida de sofrimento e hedonismo, os cabelos continuam os mesmos. Numa de suas entrevistas recentes, declarou que só agora está entrando na meia-idade. Sorte nossa.
CINCO DISCOS ESSENCIAIS

The Freewheelin Bob Dylan (1962)
Highway 61 Revisited (1965)
Blonde on Blonde (1966)
Oh Mercy (1988)
Modern Times (2007)
Para saber mais

Livros:
Crônicas: Volume 1, Bob Dylan, Planeta
Dylan, a Biografia, Howard Sounes, Conrad
DVD:
No Direction Home, Martin Scorsese, Paramount
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Bob Dylan Saiba mais sobre esse grande artista.
Bob Dylan Saiba mais sobre esse grande artista. mais matérias do canal "Gente" Edições Anteriores Edição Mar 2008

A cabeleira de Bob Dylan, uma profusão de fios convulsos apontando para todas as direções, é a parte que resume o todo. Envolta num halo bíblico, possível segredo de força incomum, marca de rebeldia e carisma, condutora de idéias extraordinárias, nunca viu uma tesoura profissional. O maior poeta da música pop mundial jamais foi ao barbeiro ou ao cabeleireiro. Tinha uma teoria curiosa sobre não mexer demais com as madeixas, e só permitia que as incontáveis namoradas ao longo da vida aparassem aqui e ali o indefectível emaranhado castanho.

Aos 10 anos, quando Robert Allen Zimmerman (1941), nascido em Duluth, no estado americano de Minnesota, descobriu o violão e depois o piano que viria a aprender a tocar sozinho, tentando copiar as músicas folk, country e blues que ouvia no rádio , seu cabelo já exibia um pequeno topete, copiado de ídolos como Little Richard e James Dean. Petulante, o topete era a ponta visível da ambição artística daquele que um dia teria cerca de 500 composições registradas, o status de lenda e até uma indicação ao Nobel de literatura. Para afl ição dos pais, um casal judeu de classe média, que queria que o filho largasse a poesia e fosse doutor, o topete cresceria, juntamente com a determinação férrea e o talento incomum.
Hino de uma época

Um acordo com o pai garantiu que Bob fosse para Nova York, palco do mundo. Ele tinha um ano para conseguir o que queria, ou então teria de arrumar um emprego respeitável. No bairro boêmio de Greenwich Village, Bob conheceu outros topetudos como ele e alguns cabeludos e barbudos, poetas, pintores, músicos, atores, dramaturgos. Acompanhado apenas da gaita e do violão, tentou a sorte em pequenos bares e cafés, cantando em canjas. Às vezes tocava para outros músicos, com os ouvidos atentos, sempre aprendendo.

Fantasista, recriava a própria biografia com cores mais fortes, para impressionar as pessoas. Ora dizia ter vivido no México e viajado o país inteiro de trem, tocando por comida nos vilarejos, ora se declarava descendente dos índios sioux, tecendo uma aura romântica que o tornava próximo de suas maiores influências, o bardo errante Woody Guthrie, pai do folk mais engajado, para quem compôs sua primeira canção importante, A Song to Woody, e o atormentado e genial poeta francês Arthur Rimbaud, autor de Uma Temporada no Inferno e Iluminações.

O primeiro contrato veio por insistência de John Hammond, produtor lendário da Columbia, o homem que havia descoberto Billie Holiday. Ninguém na poderosa gravadora acreditava naquele jovem de 20 anos, bochechudo e arrogante, que ainda por cima tinha uma voz terrivelmente anasalada e não articulava abertamente as palavras. O LP de estréia, com seu nome, vendeu mesmo pouco. Mas o segundo, que veio no ano seguinte (1962), The Freewheelin Bob Dylan, tinha uma canção que se tornaria hino involuntário da época (e de todas as épocas que viriam): Blowin in the Wind, que Bob escreveu em alguns minutos, sentado num café, como fazia tantas vezes.

Por mais que se incomodasse com isso, pois não queria ser rotulado, Dylan passou a ser visto como cantor de protesto, a voz de uma geração. Outras canções como a apocalíptica A Hard Rains a Gonna Fall, composta em plena crise dos mísseis em Cuba, quando os americanos achavam que o mundo podia acabar de uma hora para outra; a militante Only a Pawn in the Game, narrando o assassinato de um ativista negro; e o enfático libelo pacifista Masters of War reforçaram a nova fama.

A cantora Joan Baez teve papel importante nessa primeira fase. Famosa por sua voz angelical e ferrenha defesa dos direitos civis, ela, como tantas outras depois, se apaixonou por aquele sujeito franzino e maltrapilho que, não obstante, tinha um senso de humor irresistível (algo diabólico) e dava mostras de ser um gênio. Carregava ele para todos os palcos a que ia, especialmente ao Newport Folk Festival, onde Dylan inflamou definitivamente a imaginação dos jovens estudantes progressistas. Cantavam em dueto, como rei do protesto e rainha da paz, o casal perfeito da militância folk de esquerda.
Gênio polêmico

Mas o idílio durou pouco. Bob Dylan detestava sentir-se obrigado a satisfazer expectativas, preferia ser do contra. Pouco depois, em 1965 anochave em sua carreira e na história do rock voltou a Newport na condição de atração mais esperada. Começou o show como sempre, cantando suas letras longas, cheias de insights inspiradores e imagens originais, sobre a base simples e cativante do violão e o acompanhamento da gaita, que prendia num suporte ao longo do pescoço. Na segunda metade, porém, chamou parte dos músicos de uma banda de blues e literalmente detonou uma bomba, gritando ao microfone para se igualar ao som ensurdecedor dos instrumentos elétricos e da bateria. Após um momento de perplexidade, a platéia respondeu em volume igual, com vaias indignadas ao que lhes parecia ser uma traição à pureza do folk. Diz a lenda que Pete Seeger, herdeiro direto de Woody Guthrie e amigo de Bob, teria tentado cortar o cabo de força com um machado.
Seguiu-se um período de muitas vaias e incompreensão, mas também uma seqüência imbatível de obras-primas, que defi niram o espírito dos anos 60. Bringing It All Back Home trazia um lado acústico, ainda folk, mas tinha no lado B sua face elétrica, rock. Tinha também aquele que pode ser visto como o primeiro rap já feito: Subterranean Homesick Blues (que gerou também o primeiro clipe, imitado até hoje: a famosa abertura do documentário Dont Look Back, em que Bob aparece num beco descartando cartolinas com trechos da letra). Highway 61 Revisited trazia letras enigmáticas, próximas do absurdo, e uma sonoridade única, com canções ousadamente longas, ao mesmo tempo espontâneas e muito sofisticadas. É o disco de Like a Rolling Stone, tida por muitos como a melhor música pop de todos os tempos.

Blonde on Blonde viria pouco tempo depois. Primeiro álbum duplo já feito, primeiro a dar créditos aos músicos na contracapa e o primeiro a abrir com uma música falando abertamente de drogas (Rainy Day Women # 12 & 35), gravada caracteristicamente num só take, incluindo erros, risadas e outros ruídos. Mais que isso, porém, é o disco em que possivelmente estão as melhores letras de Dylan, devedoras de passagens da Bíblia, dos beatniks e simbolistas franceses, e comparáveis ao melhor de Allen Ginsberg, Charles Baudelaire e T.S. Eliot, ou qualquer outro que se possa pensar. O curioso é que, apesar de nada modesto, Dylan minimizava seu impressionante poder criativo, dizendo que as palavras fluíam através dele.

Esses discos transformaram completamente o jeito de pensar e fazer música, e mesmo o comportamento das pessoas. Os Beatles, por exemplo, diziam-se profundamente influenciados, especialmente depois de uma ou duas noites de conversa com o trovador de Minnesota, envolta em fumaça inebriante. Foi aí que soltaram a mão da namorada ideal, personagem de quase todas as suas canções até então, e passaram a seguir pelos caminhos mais tortuosos e complexos aonde apontava a obra de Dylan, que tinha ficado amigo de Lennon e Harrison. O mesmo se pode dizer dos Rolling Stones e de todos os demais artistas significativos da época e de épocas seguintes, como Hendrix (que fez versões definitivas de algumas de suas músicas), David Bowie, Eric Clapton, Bruce Springsteen, Elvis Costello, Tom Waits... Para Bruce, se Elvis tinha libertado o corpo, Bob Dylan libertou a mente.
Recluso e esquivo

Ao contrário de quase todos eles, no entanto, Bob não gostava de dar entrevistas, de ensaiar e muito menos do exaustivo processo de gravação. O mesmo jeito informal com que compunha e escrevia as letras, batendo na velha Remington ou anotando em guardanapos nas mesas de café, ele levava para dentro do estúdio, gravando tudo de primeira, decidindo na hora, sem ensaio e muito menos partitura. Era a lei do quanto mais cru e espontâneo melhor, para desespero dos produtores, que tentavam a todo custo polir as gravações. Há um episódio exemplar: certa vez Dylan surgiu no estúdio sem avisar e começou a tocar piano. Não havia nada instalado e, antes que ele começasse a cantar, sabendo que aquela poderia ser a única oportunidade, o produtor correu da cabine de som e ficou segurando um microfone na direção do astro distraído. Por essas e por outras, é talvez o artista mais pirateado da história. A ponto de ter várias gravações piratas lançadas oficialmente, como as lendárias The Basement Tapes, feitas de modo totalmente caseiro com os amigos canadenses da The Band, banda que o acompanhou em vários momentos históricos.

Bob Dylan é, provavelmente o artista sobre quem mais se escreveu, que mais suscitou interpretações, teses de doutorado, capas de revista, biografias: seu casamento com Sara Lownds, que lhe deu cinco filhos (entre eles Jakob Dylan, que faria mais sucesso comercial do que o pai, com sua banda Wall-flowers); o misterioso acidente de moto em 1966, que o afastou da vida pública por um par de anos (dizem que o verdadeiro motivo foram as drogas) e um conseqüente retorno às raízes (o clássico John Wesley Harding é dessa época); a malfadada tentativa de se tornar cineasta com o filme Renaldo & Clara; sua inesperada conversão ao cristianismo, que gerou alguns discos de valor duvidoso e (novamente!) a incompreensão de boa parte dos fãs e da crítica; o casamento secreto com Carolyn Dennis e a filha que tiveram; o sucesso do super-grupo de amigos Traveling Wilburys, que reunia, além de Bob, o lendário Roy Orbison, George Harrison, Jeff Lynne e Tom Petty; e muito mais.

Mas principalmente a volta por cima com os últimos discos e o livro de memórias Crônicas, bastante elogiado, o primeiro de uma prometida trilogia. Depois de passar dos 60 anos, sem nada a provar, nem a si mesmo nem a ninguém, Bob Dylan surpreendeu a todos e produziu três CDs tão bons quanto suas obras-primas dos anos 60 para alguns, até melhores: Time Out of Mind, Love and Theft e Modern Times. Se a voz ganhou em maturidade e sábia e irônica aspereza, fruto de uma vida de sofrimento e hedonismo, os cabelos continuam os mesmos. Numa de suas entrevistas recentes, declarou que só agora está entrando na meia-idade. Sorte nossa.

CINCO DISCOS ESSENCIAIS
The Freewheelin Bob Dylan (1962)
Highway 61 Revisited (1965)
Blonde on Blonde (1966)
Oh Mercy (1988)
Modern Times (2007)
Para saber mais

Livros:
Crônicas: Volume 1, Bob Dylan, Planeta
Dylan, a Biografia, Howard Sounes, Conrad
DVD:
No Direction Home, Martin Scorsese, Paramount

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