A CEGUEIRA E O SABER

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Primeiro esta lenda: "Era uma vez uma praga que atingiu os mongóis. Os saudáveis fugiram, deixando os doentes e dizendo: 'Que o Destino decida se eles vivem ou morrem'. Entre os doentes havia um jovem chamado Tarvaa. O seu espírito deixou o corpo e chegou ao lugar dos mortos. O governante daquele lugar disse a Tarvaa: 'Por que deixaste o teu corpo enquanto ainda estava vivo?'. 'Eu não esperei que tu me chamasses', respondeu Tarvaa, 'simplesmente vim'. Comovido com a presteza com que o jovem obedeceu, o Khan do Inferno disse: 'A tua hora ainda não chegou. Deves retornar. Mas podes levar daqui o que quiseres'. Tarvaa olhou em volta e viu todas as alegrias e todos os talentos terrenos: riqueza, felicidade, riso, sorte, música, dança. 'Dá-me a arte de contar histórias', disse ele, pois sabia que as histórias podem congregar as outras alegrias. E assim retornou ao seu corpo e constatou que os corvos já lhe haviam arrancado os olhos. Como não podia desobedecer ao Khan do Inferno, reentrou no próprio corpo e viveu cego, porém conhecendo todos os contos. Passou o resto da vida viajando pela Mongólia, contando contos e lendas e trazendo às pessoas alegria e saber".
Sintomaticamente essa lenda começa mencionando "uma praga que atingiu os mongóis" e termina revelando como o herói se tornou exemplar contador de histórias. A exemplo de "O Decamerão", de Bocaccio, várias narrativas se referem às pestes que antecederam o surgimento dos contadores de história. No caso da narrativa italiana, um grupo de jovens se refugia num determinado lugar por causa da peste e para passar o tempo eles começam a contar histórias. Narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte. Igualmente em "As mil e uma noites", as peripécias que Sherazade vai desfiando noite após noite é o seu estratagema para postergar a sua morte.
No caso da lenda mongol, além da peste como elemento disparador dos fatos, há um dado singular: como todo personagem mítico, o herói Tarvaa transita entre a vida e a morte, como se não houvesse separação entre elas. É o herói mágico que vive no limiar, na fronteira entre dois mundos. Adentrou-se na morte, mas estava vivo. Não esperou que o chamassem para o outro lado - "simplesmente vim", diz ele, como se isso lhe fosse natural. E como uma espécie de prêmio ou reconhecimento lhe é conferido o direito de escolher o que quiser do mundo sobrenatural. Mas à semelhança de outros heróis míticos, ele recusa as riquezas e opta por algo bem mais modesto, algo que aparentemente é nada: contar histórias.
Em dois outros extremos, um religioso e outro literário, poderíamos estabelecer um paralelo, com Cristo recusando tudo, toda a aparência de poder e brilho que o demônio lhe ofereceu do pináculo do templo ou, no episódio poético e metafísico da "Máquina do mundo" que apareceu ao poeta (Drummond) oferecendo-lhe também a solução de todos os enigmas. Nesses episódios, igualmente, há a recusa das aparências, do falso poder e do falso saber. E assim como na mítica biografia do Rei Salomão, que ao ser indagado, ainda jovem, o que mais queria, respondeu "sabedoria", o herói mongol optou também por um tipo de saber & poder imponderável: viver no fabuloso imaginário.
Mas nosso herói, como nos mitos, por ter se apressado, como se tivesse cometido uma infração, é também punido. Enquanto dialogava com o Khan do Inferno, do lado de cá onde havia largado seu corpo, os corvos comeram-lhe os olhos. Mesmo assim ele reassume sua forma e seu papel no drama, pois sendo cego ele conhecia já "todos os contos" e levava às pessoas "alegria e saber". Ele não necessitava mais ver o exterior, a sabedoria iluminava sua vida interior.
A cegueira e o conhecimento são dois termos que pontuam inúmeros mitos. Ao invés de se anularem, esses dois termos se potencializam. Édipo, por exemplo, na tragédia de Sófocles, nos dá dois elementos importantes para esta análise. Primeiro a peça se inicia descrevendo, a exemplo do mito mongol, o misterioso flagelo, "a pavorosa peste" que se abateu sobre a cidade. Em segundo lugar , um dos pontos altos da tragédia é quando ao "ver" que possuiu a própria mãe depois de ter matado o pai, Édipo cega-se assombrosamente. Dir-se-ia que cegou-se para não ver. Mas numa interpretação ultra-sofisticada de Heidegger, Édipo é aquele que se cegou para melhor ver a sua patética situação.
Cegueira e (pré)visão. Do Cego Aderaldo repentista no sertão nordestino à Grécia esses termos se complementam. "Furaram os óio do assum preto prá ele assim cantar melhor", diz Luiz Gonzaga. Homero, diz-se, era um bardo cego. E é comum aqui e ali encontrar o profeta, o sacerdote, o xamã ou o pajé, sempre cegos, que de dentro de sua cegueira enxergam melhor que a corte ou toda a tribo. É assim que Tirésias, o adivinho que aparece em várias peças de Sófocles, sendo cego é o que pode narrar e prever. É ele quem revela a Édipo o que, antes de cegar-se, Édipo ignorava.
Tome-se agora esse extraordinário livro "Meu nome é vermelho" (Companhia das Letras) do escritor turco Orhan Pamuk. A cegueira e a sabedoria são dois temas fortes dessa obra, que estabelece o confronto entre a maneira renascentista de pintar e o modo de conceber figuras e miniaturas nos impérios persa, mongol e turco. Aí, como se estivessem revivendo mitos, os pintores cultivavam a cegueira como forma de aperfeiçoar sua pintura. Assim, "a cegueira não era um mal, mas a graça suprema concedida por Alá ao pintor que dedicara a vida inteira a celebrá-lo; porque pintar era a maneira de o miniaturista buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem igual só pode ser alcançada por meio da memória, depois que o véu da cegueira cair sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de trabalho duro. Assim, a maneira como Alá vê o seu mundo só se manifesta por meio da memória dos velhos pintores cegos".
Por isto no Islã antigo pintores apressavam sua cegueira pintando sobre uma unha ou grão de arroz, ou fingiam-se de cegos, pois só os sem talento precisavam dos olhos.
Talvez, por aí, se possa começar a entender a opção que faz o artista entre o mundo imaginário, para ele mais real que o real, e o que os demais denominam como realidade.
É preciso depois de ver, desver para que o real se realize.

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