Escolha uma criança, de preferência negra e de uma família de prole numerosa; é recomendável o sexto ou sétimo filho, e que o pai seja omisso no cumprimento do exercício do poder familiar e sequer tenha registrado seu filho. Os irmãos devem preferencialmente ser de pais diferentes e, a mãe, se não for alcoólatra, deve estar desempregada. Deve residir em comunidade onde o poder público só comparece para trocar tiros e deixar vítimas. Esta não pode ter escola, nem posto de saúde e deve receber com freqüência a visita do "caveirão". Será fácil achar essa comunidade no Rio de Janeiro.
Ensine, desde cedo a essa criança, que ela não é amada, que é rejeitada por sua própria mãe, que a todo instante demonstra sua insatisfação com a maternidade. Para tanto, espanque-a pelo menos três ve zes ao dia para que ela saiba que, na vida, tudo tem que ser tratado com muita violência. Impeça qualquer possibilidade de desenvolver- se sadia, pois esse fato estragará todo o seu projeto. Importante: repita sempre para essa criança que ela é má, coisa ruim e odiada pela família, principalmente porque chegou para dividir o pequeno espaço que os abriga e a escassa alimentação.
Pode-se optar por deixá-la em casa, na ociosidade, afinal faltam vagas nas creches do município, ou se preferir, encaminhe-a para uma escola onde os professores faltem muito e que as greves sejam freqüentes, caso contrário ela pode correr o risco de gostar de estudar e aí ser muito difícil continuar analfabeto, o que pode colocar em risco o seu projeto.
Na escola, procure discriminá-la e desestimular seu estudo, reprovando-a sempre. E, se praticar alguma traquinagem, expulse-a da escola. Importante também: não permita que seja alfabetizada porque ela pode desejar entrar no competitivo mercado de trabalho e ocupar o espaço reservado aos filhos das elites.
Outra opção interessante é colocar a criança para trabalhar desde muito cedo. Infância pra que? Perder tempo com brincadeiras não é coisa para criança favelada. Tem mesmo é que ganhar a vida muito cedo e ainda tra zer dinheiro para sustentar a família faminta. A rua está cheia de espaço público para que elas fiquem vendendo balas e jogando bolinhas até que possa ser "usada" na exploração sexual, uma atividade lucrativa muito estimulada por adultos.
Fragili ze-a. Não permita qualquer acesso á saúde; médicos e medicamentos devem ser mantidos à distância. Os hospitais públicos devem ser sucatados. Afinal, é preciso garantir os lucros cada vez maiores dos poderosos planos de saúde. Para acelerar sua debilidade, aproxime-a das drogas; a cola de sapateiro é um bom começo e ajuda a "matar a fome". Se usar maconha, prenda logo esse marginal por estar usando uma droga tão cara já que têm disponível a cola e o "crack" muito mais baratos.
A campanha pela redução da responsabilidade penal é imprescindível para pôr logo esses "perigosos bandidos" na cadeia. Afinal são eles os grandes responsáveis por tanta violência ainda que os índices oficiais não cheguem a 2% dos atos violentos atribuídos aos jovens, e o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro tenha constatado que eles são agentes de violência num percentual de 9,8% contra 91,2% onde são vítimas. Pura manipulação dos dados para favorecer estes "trombadinhas" . Reduzindo a responsabilidade penal você fica livre mais rápido dessa "sujeira" que ocupa os logradouros públicos, denunciando a incompetência dos administradores públicos para implementar as políticas públicas necessárias para a promoção dos excluídos à categoria de cidadãos.
É claro que eles já têm maturidade para responder por seus atos criminosos. Afinal, assistem diariamente às nossas pedagógicas novelas e são informados pelos despretensiosos noticiários, que mesmo tratando o telespectador como a família Flinstones, a mídia jamais influencia a nossa "livre" opinião. E, claro, todas as crianças e adolescentes do Brasil têm à sua disposição as melhores escolas do mundo.
A educação pública também deve ser da pior qualidade. Onde já se viu o ensino público competir com os tubarões do ensino particular? Caso isso venha a ocorrer, como manter os altos preços das mensalidades escolares? E a queda do lucro - e isso, nunca! Aquela idéia maluca de construir escolas de atendimento integral, com médicos, dentistas, atividades profissionalizantes , prática esportiva felizmente já saiu de pauta. Ficamos livres daqueles insanos, que já morreram. Queriam aplicar todo nosso dinheirinho dos mensalões e sangue suga em educação. Que desperdício!
Pode-se até fa zer concessões com relação ao la zer. Deixe-a soltar pipas e foguetes, somente se estiver a serviço dos bandidos. Isso pode ser muito lucrativo para essa criança. O tráfico dá a ela a oportunidade que os empresários negam, de participar na divisão das riquezas com seu "trabalho ilícito". Pode-se permitir, também, que brinque de mocinho e bandido e que as armas sejam de verdade, assim morrem mais rápido. As estatísticas mostram essa realidade.
O direito à convivência comunitária lhe deve ser assegurado, mas com ressalvas. Mantenha-a em uma comunidade comandada pela bandidagem. Ali ela não terá outra opção: ou adere ou morre. Se aderir, isso será por pouco tempo, porque logo será presa; é mais fácil prender crianças como "bucha de canhão" do que os adultos que as exploram e coagem; ou, então, logo ela será um número nas estatísticas do extermínio. Vez por outra, deixe-a fa zer um estágio nas "escolas de infratores". A convivência com outros adolescentes de mais idade, que praticam infrações mais graves, poderá aperfeiçoá-la e promovê-la a outra categoria do crime. Detalhe: essa "escola" deve estar à margem das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e os "educadores" devem odiar crianças e estar sempre munidos de palmatórias e cassetetes. Não pode essa escola ser dotada de qualquer proposta pedagógica, porque corre o risco de desviar o adolescente de seu destino criminológico.
Providencie uma poderosa campanha publicitária na mídia para que a opinião pública eleja essa criança seu inimigo público número um. Exiba sempre, nas primeiras páginas dos jornais, toda e qualquer infração praticada por criança ou adolescente, ainda que essa violência a eles atribuída seja uma raridade. Repita, sempre, nos maiores jornais e emissoras de televisão que ela é uma perigosa assassina, responsável por toda a violência existente no país. Nunca admita a efetivação dos preceitos constitucionais que lhe garantem direitos fundamentais que são costumeiramente desrespeitados pela família, pelo Estado e pela sociedade. Nunca diga que ela é vítima da omissão e da ausência de políticas básicas; isso pode ser considerado demagogia e a até acusarem você de defensor dos direitos humanos, o que é um conceito pejorativo no meio dos humanos.
Com uma campanha desse tipo, garante-se que os verdadeiros bandidos e mafiosos ficarão em segundo plano. Corruptos fraudadores, ladrões do dinheiro público só merecem publicidade uma vez ou outra para disfarçar. A ênfase maior deve ser dada ao "pivete", "trombadinha" e "dimenor".
Nunca deixe que se faça uma campanha para a colocação em família substituta: isso pode reduzir em muito o exército dos excluídos e considerar mais uma forma desleal de competição com nossos "mauricinhos" e "patricinhas" .
Tudo que você proíbe a essas crianças estimule aos outros adolescentes. Deixe que freqüentem boates promíscuas onde podem exercitar suas carências afetivas agredindo os outros e usando drogas. Lá a venda de bebidas alcoólicas é livre para adolescentes abastados. O sexo é livre e sem limites. Nossos filhos precisam aprender a serem "homens" desde cedo. O acesso às drogas é permitido e até estimulado. Deixe que essa criança perceba que existe essa diferença no tratamento aos cidadãos que vivem sob a mesma lei. Isso servirá para aumentar as diferenças sociais, o ódio e a frustração de não poder ser tratada como o outro.
Pronto, você conseguiu, finalmente, criar o seu monstro. Agora conviva com ele.
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